As denominadas salas de chuto poderão sair do papel para o terreno, 16 anos depois de serem terem sido previstas na lei. O ressurgimento do consumo de algumas substâncias ilícitas, como a cocaína por via injetável e a heroína, levaram a que se voltasse “a equacionar a sua criação”, adianta João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). As câmaras municipais do Porto e Lisboa já estão, inclusive, a tomar iniciativas para estudar a sua viabilidade
Apresentado
esta quarta-feira na Assembleia da República, o relatório de 2015 da
situação de Portugal em matéria de álcool, drogas e toxicodependência
mostra “uma evolução globalmente positiva no panorama dos consumos de
álcool e drogas em Portugal” e “no contexto europeu”, considera o
diretor do SICAD. Mas João Goulão reconhece também alguns sinais
recentes de alerta, nomeadamente no que diz respeito “a consumos mais
problemáticos sobretudo por pessoas que já estiveram em processo de
tratamento e recaíram”. O regresso dos consumos de heroína constituem
motivo de preocupação: esta continua não só a ser a droga principal mais
referida pelos doentes readmitidos a tratamento (embora o número de
readmitidos tenha diminuído pelo terceiro ano consecutivo), mas
registou-se também um aumento de novos utentes que têm a heroína como
droga principal.
As mortes por overdose aumentaram 21% de 2014 para 2015. É preciso repensar as estratégias de combate e prevenção?
São números relativamente baixos, felizmente. Com a flutuação de três
overdoses a mais ocorridas num ano [de 37, em 2014, para 40, em 2015],
não significa que este seja um indicador, por si só, muito grave.
Evidentemente que, conjugado com outros pontos de observação realizada
pelas equipas de rua e estruturas de proximidade, é um número que tem
que ser tido em conta. É preciso perceber se, de facto, é uma tendência,
embora seja verdade que no terreno tenha sido identificada o
ressurgimento de fenómenos que pareciam estar em declínio sustentado na
sociedade portuguesa.
Como o regresso da heroína?
O regresso da heroína, do consumo de cocaína por via injetável e em
situações de degradação. Tínhamos uma descida sustentada do consumo por
via injetável, quer na população que entrava pela primeira vez no
sistema de tratamento, quer naqueles que eram readmitidos a tratamento.
Nos últimos anos temos notado, no caso dos readmitidos, o aumento
progressivo do uso por via injetável.
Por que motivo se verifica esta tendência?
É difícil estabelecer diretamente uma relação de causa e efeito. Todos
os meus colegas que estão no terreno, e têm um contacto direto e
cara-a-cara com estas pessoas, são unânimes em referir que as
dificuldades acrescidas ocorridas no tecido social português e
decorrentes da crise foram determinantes para a ocorrência destas
recaídas.
Este é um dos principais motivos?
Esta população é das mais sensíveis às dificuldades económicas. Alguns
tinham conseguido reorganizar as suas vidas, passando por estruturas de
tratamento e, em simultâneo, processos de reinserção social e laboral;
outros tinham outro tipo de apoios, como subsídios de reinserção, que
foram seriamente comprometidos nos últimos anos. Foram pessoas que, de
repente, se viram confrontadas com dificuldades acrescidas na sua
subsistência. E estas substâncias, nomeadamente a heroína e o álcool,
são muito utilizadas para o alívio do sofrimento.
A que
soluções se pode recorrer para combater o ressurgimento destes consumos?
A criação das denominadas “salas de chuto”, previstas na legislação de
2001, podem fazer parte da solução?
Eventualmente, nas
circunstâncias atuais, com o recrudescimento do consumo destas
substâncias, penso que faz sentido voltar a equacionar a sua criação.
Aliás, estamos a fazer uma reflexão sobre isso, que motivou iniciativas
das câmaras municipais das grandes cidades do país, nomeadamente em
Lisboa (que realizou uma conferência centrada no tema) e no Porto (que
encomendou um estudo para identificar a população-alvo e fazer
recomendações). O recurso às salas de consumo assistido está em cima da
mesa e estamos atentos e disponíveis para autorizar a sua criação, se
tal iniciativa for julgada pertinente. Será esse o nosso papel.
Mas não era essa a sua perceção há uns meses.
Apesar de ter estado na criação da legislação que tornou possível a
existência de salas de consumo, aprovada em 2001, não houve condições de
acordo político entre as autoridades autárquicas e o Governo central.
Quando finalmente as circunstâncias políticas o permitiram, constatou-se
que já não seria necessário dada a queda mais ou menos abrupta dos
consumos por via injetável e em contexto de maior desorganização. Mas
este recrudescimento recente, que parece um pouco fora de controlo,
volta a pôr a questão em cima da mesa.
O
relatório aponta ainda para um aumento dos consumos de canábis entre os
novos doentes submetidos a tratamento em 2015. Neste cenário, como vê
as propostas para despenalizar o consumo de canábis?
Nós
temos hoje uma experiência, globalmente positiva, de 15 anos de
descriminalização de todas as substâncias — e penso que muito bem aceite
pela generalidade da população e a nível político, nacional e
internacional. Neste momento há experiências num novo paradigma [o da
despenalização] noutras zonas do mundo, como no Uruguai e em vários
estados dos EUA. Não temos urgência imediata para alterarmos o nosso
quadro legislativo. Quando descriminalizámos estes consumos
enfrentávamos uma situação perfeitamente calamitosa. Hoje não é esse o
caso. Podemos aguardar algum tempo até que existam resultados
consistentes dessas experiências, ao nível do impacto na saúde
individual e coletiva.
Que impacto teve a transferência
do tratamento e prestação de cuidados a casos de toxicodependência e
alcoolismo para as Administrações Regionais de Saúde (ARS) na capacidade
de resposta no terreno?
O que terá levado a essa
transferência foi, por um lado, o objetivo de aproximar as estruturas
antes dependentes do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) ao
resto das respostas oferecidas pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS),
maioritariamente ao nível dos cuidados de saúde primários e cuidados
hospitalares; por outro, uma tentativa de poupança. Tanto num caso como
no outro creio que não houve ganhos: não se verificaram grandes
progressos na implementação da rede de referenciação e na articulação
entre os vários cuidados e a poupança não terá sido significativa e
houve apenas um pulverizar do orçamento, antes alocado ao IDT, por seis
entidades (SICAD e cinco fatias para as ARS). E, na prática, perdeu-se
capacidade de gestão e agilidade na operacionalização de todo este
dispositivo. Não me parece ter sido uma experiência bem-sucedida. É esta
a avaliação feita por um número significativo de profissionais no
terreno.
Estão previstas mudanças nesta estrutura?
O que foi incluído na lei do orçamento para 2017 foi um artigo que
prevê uma reavaliação deste dispositivo e, eventualmente, o repensar da
geometria da entidade responsável pela prestação dos cuidados nesta área
dos comportamentos aditivos. É isso que creio que será feito a curto
prazo.
Concretamente, em que é que isso se traduz? Pode levar a um ressurgimento do IDT?
Não necessariamente a um regresso do IDT nem à reconstituição de uma
estrutura com a mesma configuração. Mas penso que será possível a
constituição de uma estrutura, ou atribuição ao SICAD, da
responsabilidade de gerir diretamente estas respostas, em vez de ser
como atualmente, com as ARS. Isto é algo que, tanto quanto sei, o
gabinete do ministro da Saúde está a equacionar no quadro mais amplo da
nova lei orgânica do Ministério da Saúde. Mas não sei grandes pormenores
acerca do que poderá vir a ser decidido.
Maria João Bourbon
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-02-10-O-recurso-as-salas-de-consumo-assistido-esta-em-cima-da-mesa
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