10 fevereiro 2017

“O recurso às salas de consumo assistido está em cima da mesa”

As denominadas salas de chuto poderão sair do papel para o terreno, 16 anos depois de serem terem sido previstas na lei. O ressurgimento do consumo de algumas substâncias ilícitas, como a cocaína por via injetável e a heroína, levaram a que se voltasse “a equacionar a sua criação”, adianta João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). As câmaras municipais do Porto e Lisboa já estão, inclusive, a tomar iniciativas para estudar a sua viabilidade



Apresentado esta quarta-feira na Assembleia da República, o relatório de 2015 da situação de Portugal em matéria de álcool, drogas e toxicodependência mostra “uma evolução globalmente positiva no panorama dos consumos de álcool e drogas em Portugal” e “no contexto europeu”, considera o diretor do SICAD. Mas João Goulão reconhece também alguns sinais recentes de alerta, nomeadamente no que diz respeito “a consumos mais problemáticos sobretudo por pessoas que já estiveram em processo de tratamento e recaíram”. O regresso dos consumos de heroína constituem motivo de preocupação: esta continua não só a ser a droga principal mais referida pelos doentes readmitidos a tratamento (embora o número de readmitidos tenha diminuído pelo terceiro ano consecutivo), mas registou-se também um aumento de novos utentes que têm a heroína como droga principal.

As mortes por overdose aumentaram 21% de 2014 para 2015. É preciso repensar as estratégias de combate e prevenção?
São números relativamente baixos, felizmente. Com a flutuação de três overdoses a mais ocorridas num ano [de 37, em 2014, para 40, em 2015], não significa que este seja um indicador, por si só, muito grave. Evidentemente que, conjugado com outros pontos de observação realizada pelas equipas de rua e estruturas de proximidade, é um número que tem que ser tido em conta. É preciso perceber se, de facto, é uma tendência, embora seja verdade que no terreno tenha sido identificada o ressurgimento de fenómenos que pareciam estar em declínio sustentado na sociedade portuguesa.

Como o regresso da heroína?
O regresso da heroína, do consumo de cocaína por via injetável e em situações de degradação. Tínhamos uma descida sustentada do consumo por via injetável, quer na população que entrava pela primeira vez no sistema de tratamento, quer naqueles que eram readmitidos a tratamento. Nos últimos anos temos notado, no caso dos readmitidos, o aumento progressivo do uso por via injetável.

Por que motivo se verifica esta tendência?
É difícil estabelecer diretamente uma relação de causa e efeito. Todos os meus colegas que estão no terreno, e têm um contacto direto e cara-a-cara com estas pessoas, são unânimes em referir que as dificuldades acrescidas ocorridas no tecido social português e decorrentes da crise foram determinantes para a ocorrência destas recaídas. 

Este é um dos principais motivos?
Esta população é das mais sensíveis às dificuldades económicas. Alguns tinham conseguido reorganizar as suas vidas, passando por estruturas de tratamento e, em simultâneo, processos de reinserção social e laboral; outros tinham outro tipo de apoios, como subsídios de reinserção, que foram seriamente comprometidos nos últimos anos. Foram pessoas que, de repente, se viram confrontadas com dificuldades acrescidas na sua subsistência. E estas substâncias, nomeadamente a heroína e o álcool, são muito utilizadas para o alívio do sofrimento. 

A que soluções se pode recorrer para combater o ressurgimento destes consumos? A criação das denominadas “salas de chuto”, previstas na legislação de 2001, podem fazer parte da solução?
Eventualmente, nas circunstâncias atuais, com o recrudescimento do consumo destas substâncias, penso que faz sentido voltar a equacionar a sua criação. Aliás, estamos a fazer uma reflexão sobre isso, que motivou iniciativas das câmaras municipais das grandes cidades do país, nomeadamente em Lisboa (que realizou uma conferência centrada no tema) e no Porto (que encomendou um estudo para identificar a população-alvo e fazer recomendações). O recurso às salas de consumo assistido está em cima da mesa e estamos atentos e disponíveis para autorizar a sua criação, se tal iniciativa for julgada pertinente. Será esse o nosso papel.

Mas não era essa a sua perceção há uns meses.
Apesar de ter estado na criação da legislação que tornou possível a existência de salas de consumo, aprovada em 2001, não houve condições de acordo político entre as autoridades autárquicas e o Governo central. Quando finalmente as circunstâncias políticas o permitiram, constatou-se que já não seria necessário dada a queda mais ou menos abrupta dos consumos por via injetável e em contexto de maior desorganização. Mas este recrudescimento recente, que parece um pouco fora de controlo, volta a pôr a questão em cima da mesa. 

O relatório aponta ainda para um aumento dos consumos de canábis entre os novos doentes submetidos a tratamento em 2015. Neste cenário, como vê as propostas para despenalizar o consumo de canábis?
Nós temos hoje uma experiência, globalmente positiva, de 15 anos de descriminalização de todas as substâncias — e penso que muito bem aceite pela generalidade da população e a nível político, nacional e internacional. Neste momento há experiências num novo paradigma [o da despenalização] noutras zonas do mundo, como no Uruguai e em vários estados dos EUA. Não temos urgência imediata para alterarmos o nosso quadro legislativo. Quando descriminalizámos estes consumos enfrentávamos uma situação perfeitamente calamitosa. Hoje não é esse o caso. Podemos aguardar algum tempo até que existam resultados consistentes dessas experiências, ao nível do impacto na saúde individual e coletiva.

Que impacto teve a transferência do tratamento e prestação de cuidados a casos de toxicodependência e alcoolismo para as Administrações Regionais de Saúde (ARS) na capacidade de resposta no terreno?
O que terá levado a essa transferência foi, por um lado, o objetivo de aproximar as estruturas antes dependentes do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT) ao resto das respostas oferecidas pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), maioritariamente ao nível dos cuidados de saúde primários e cuidados hospitalares; por outro, uma tentativa de poupança. Tanto num caso como no outro creio que não houve ganhos: não se verificaram grandes progressos na implementação da rede de referenciação e na articulação entre os vários cuidados e a poupança não terá sido significativa e houve apenas um pulverizar do orçamento, antes alocado ao IDT, por seis entidades (SICAD e cinco fatias para as ARS). E, na prática, perdeu-se capacidade de gestão e agilidade na operacionalização de todo este dispositivo. Não me parece ter sido uma experiência bem-sucedida. É esta a avaliação feita por um número significativo de profissionais no terreno.

Estão previstas mudanças nesta estrutura?
O que foi incluído na lei do orçamento para 2017 foi um artigo que prevê uma reavaliação deste dispositivo e, eventualmente, o repensar da geometria da entidade responsável pela prestação dos cuidados nesta área dos comportamentos aditivos. É isso que creio que será feito a curto prazo.

Concretamente, em que é que isso se traduz? Pode levar a um ressurgimento do IDT?
Não necessariamente a um regresso do IDT nem à reconstituição de uma estrutura com a mesma configuração. Mas penso que será possível a constituição de uma estrutura, ou atribuição ao SICAD, da responsabilidade de gerir diretamente estas respostas, em vez de ser como atualmente, com as ARS. Isto é algo que, tanto quanto sei, o gabinete do ministro da Saúde está a equacionar no quadro mais amplo da nova lei orgânica do Ministério da Saúde. Mas não sei grandes pormenores acerca do que poderá vir a ser decidido.

Maria João Bourbon 
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-02-10-O-recurso-as-salas-de-consumo-assistido-esta-em-cima-da-mesa 

Sem comentários: