Há vinte anos no ramo, Madame Claire (nome artístico) tem agora uma vida mais recatada. Lidera com mão de ferro um apartamento no centro de Coimbra, onde trabalham duas a três meninas de cada vez. Começou como modelo em stands no Brasil e desse tempo lembra a actriz Vera Fisher como companheira de início de percurso. Já nessa altura, quando vendia carros com a beleza das suas curvas, não tinha dúvidas de que o seu negócio era só um: vender fantasias.
Vinte anos depois, fala da sua nova actividade. “A partir do momento em que o cliente entra, vem à procura de algo que não tem. Deixam de ser quem a sociedade conhece e às vezes torna-se complicado, porque ou se tornam violentos ou querem fazer coisas que as meninas não deixam. O deboche não está aqui, só recebemos o que vem de fora”, sentencia.
Fantasia, reza o dicionário, é devaneio, ficção, sonho, capricho, extravagância. Tudo adjectivos que encaixam na perfeição numa das mil definições da prostituição. Aqui encontra-se quem em dez ou vinte minutos se transforma e liberta tudo o que a sociedade não lhe permite ser. É um escape para fantasias, frustrações ou simplesmente uma descarga que em alguns casos se torna num vício.
Também as meninas que o CM encontrou na cidade dos estudantes, que falam sobretudo português do Brasil, procuram a sua quimera. Querem ganhar dinheiro rápido para os filhos estudarem nas melhores escolas privadas.
Madame Claire fala do alto da experiência de quem diz já ter visto e vivido muito. No entanto, não deixa ainda de se espantar com os homens que largam tudo para vir até às suas protegidas. “São viciados. Isto para eles é como uma droga. Trazem o dinheiro contado, às vezes até à moeda. Elas ficam deslumbradas porque de repente têm dinheiro todos os dias”, contou.
Em Coimbra, o negócio da prostituição é das brasileiras. Dominam o mercado. Chegam recomendadas por outras. Vêm na maioria de Goiás e as casas luxuosas que florescem na vizinhança criam a ilusão de que o nosso país é o eldorado. A língua, o ambiente calmo, o menor controlo das autoridades, são aliciantes que fazem do bilhete de avião para Portugal sinónimo de muitos euros e regresso ao Brasil com status.
Foi o caso de Kelly. Casou cedo e precocemente teve de fazer pela vida. Uma amiga falou-lhe de Portugal e a vontade de ver o dinheiro multiplicar-se em pouco tempo foi uma tentação demasiado forte. A realidade desiludiu-a. “O que me falaram não era verdade. Diziam que não havia pobreza, tudo era limpinho e arranjado, sem desemprego nem violência. Um mar de rosas.”
AMOR
Num meio que muitos consideram volátil e promíscuo, haverá lugar para o amor? O mito do príncipe encantado – homem que as há-de tirar da vida – é para muitas das prostitutas com quem o CM conversou mais do que um sonho distante. É uma ideia da qual não querem desistir, mas cujos resultados nos contam serem decepcionantes. Para Monique, travesti, é um desejo difícil. “É raro encontrar aqui afectos. A procura para travestis é mais profissional. Uma vez estive mesmo apaixonada, mas tudo desabou com uma traição”.
Para Madame Claire a experiência tem-lhe mostrado uma realidade bem negra. “Muitas delas pensam que vão sair da vida mas depois o namorado torna-se chulo. Dão prendas caras e vão-se aproveitando do nível de vida delas. Acabam por deixar o trabalho e passam a viver por conta delas.”
Apesar de não deixar a prostituição, Kelly teve melhor sorte. Encontrou em Portugal o amor no feminino. Tem uma namorada, também prostituta, e por isso não faz convívios com outras mulheres. “Respeito-a muito e não me sentia bem ir com mulheres.” No que diz respeito ao prazer, fazer sexo profissionalmente não modificou o gosto de estar com quem ama. “Fazer sexo com quem se gosta é totalmente diferente. Depois de estar com ela até me custa voltar a trabalhar”, diz.
Demora apenas meia hora mas a transformação é radical. Os namorados, de 36 e 23 anos, passam a ser Bianca e Ana Carolina. A maioria dos clientes quer iludir-se e pensar que não está com homens, quebrando a barreira psicológica da homossexualidade.
Não gostam de se travestir, mas o negócio assim exigiu. Triplicaram a clientela em pouco tempo. “Ao telefone dizem querer um travesti, mas ao entrarem no quarto a maior parte quer um homem. Torna-se até engraçado porque às vezes a peruca caí, vêem os pêlos, mas continuam a dizer minha querida”.
Pontualmente, Ana Carolina e Bianca juntam-se para actuações que dizem ser memoráveis. A cumplicidade faz com que às vezes não consigam evitar os risos. Aos momentos que muitos encarariam como trágicos o casal interpreta-os como cómicos. “Veio cá um homem de 85 anos e eu só temia que com a excitação o velho morresse lá dentro”, lembrou Bianca. Noutra situação, o cheiro tornou-se insuportável. “Era um moço novo, mas tive de o pôr na banheira e obrigá-lo a pagar mais dez euros.”
Esta dupla, tal como Kelly, Madame Claire ou Monique, procura alcançar o sonho: ganhar dinheiro rápido para começar uma nova vida, longe da prostituição.
"QUEREMOS ESCLARECÊ-LAS SOBRE DOENÇAS": Paulo Anjos, director técnico da associação Existências, faz trabalho de rua com prostitutas em Coimbra
Correio da Manhã – Que tipo de trabalho fazem na rua?
Paulo Anjo – Fazemos prevenção do VIH/sida, com a prostituição feminina e encontros homossexuais. São equipas de rua em que abordamos as pessoas. Queremos esclarecê-las sobre as doenças sexualmente transmissíveis (DST). Distribuímos preservativos e fazemos apoio psico-social, no qual se inclui o acompanhamento a hospitais e outros serviços de apoio.
– Em que consiste o projecto Domus?
– Começámos por fazer uma pesquisa nos jornais como qualquer cliente que as procura e fomos telefonando. Depois de algum tempo criámos uma rede de relações com as pessoas, que foram passando a palavra. A princípio reagem com alguma desconfiança, porque pensam que somos da Judiciária ou do SEF. Mas com persistência fomos ultrapassando essas barreiras.
– Como ultrapassam essas reticências?
– Temos uma grande vantagem que nos permite entrar no meio. É o material de troca: o preservativo. Faz com que consigamos aproximar-nos. Depois elas vão falando umas com as outras e começam a saber que há umas pessoas que vão junto delas e que dão apoio.
– Quais são os resultados da vosso trabalho?
– Quantitativamente é difícil de fazer uma avaliação exacta. Mas passamos anualmente questionários para perceber a evolução do seu conhecimento sobre as DST.
MARIDO NA PRISÃO LEVOU-A A IR PARA A VIDA
“No que faço custa-me tudo, mas já estou tão habituada que levo na desportiva. Foi difícil começar. No primeiro cliente que tive tomei banho de lixívia. Foi muito traumatizante. Ser prostituta acaba quando o meu marido sair da cadeia. Ele sai em condicional em Março”, contou ao ‘CM’ Drika, uma jovem portuguesa que partilha o apartamento com uma brasileira de 49 anos.
Chegou a Coimbra porque o marido ali estava detido na penitenciária, mas antes teve uma passagem por Espanha.
“Há lá muita droga e só quem fumar ou se injectar é que consegue trabalhar. O ambiente é muito pesado, os clientes são todos viciados. Ao chegar ao quarto metem sempre o carreirinho da branca para cheirar antes e depois”, disse.
MULHERES ITINERANTES NA RUA
Na prostituição de rua encontra-se normalmente mulheres com baixo nível cultural e a quem a pobreza levou a procurar no sexo pago, a solução. Muitas vezes é o próprio marido a tornar-se proxeneta. É a solução para a economia familiar subsistir. A itinerância é outra das características destas mulheres. Xana, de 47 anos, sai de Aveiro de manhã, rumo às matas de Viseu. À tarde está na zona de Condeixa, na EN1, e à noite no centro de Coimbra. Tanto movimento para um salário bem acima da média: dois mil euros. “Fazemos cinco clientes por dia com um preço de 25 euros.”
ADOLESCENTE TENTAVA ROUBÁ-LAS
Um rapaz de 15 anos pôs recentemente em alvoroço as prostitutas da Figueira da Foz. O jovem procurava-as em busca de experiências sexuais.
“O miúdo ligava-lhes e combinava com elas o encontro. Depois de entrar no quarto, sob a ameaça de faca, exigia fazer sexo com elas. Nunca chegou a magoá-las”, disse ao ‘CM’ um técnico da associação Existências, Gonçalo Barra. “Ele queria também roubá-las e tentava ir às carteiras delas. São casos que não são comunicados à polícia porque as mulheres estão ilegais”, acrescentou.
DEPOIMENTOS
"PENSA QUE CUIDO DE VELHOS": Drika | 49 anos
“O meu pai acha que estou a tomar conta de um velho, mas estou é a tomar conta de muitos. Gosto do que faço, divirto-me bastante. O melhor cliente que já tive foi um velho de 81 anos, um dos primeiros em Coimbra. Não sei se tomava Viagra, mas tinha mais fulgor do que um menino de vinte. Ficou uma hora comigo, o que muitos novos não conseguem.”
"NO APARTAMENTO É MAIS DISCRETO": Erika | 26 anos
“Num clube temos de nos sujeitar a muita coisa. Sentarmo-nos com o cliente, enrolá-lo para que comece a beber. Num apartamento é mais directo. Os clientes já sabem ao que vão e não há rodeios. Em termos de dinheiro é o mesmo, mas em apartamentos há menos riscos com a polícia e o estilo de cliente até é igual.”
"COMPETITIVIDADE É CADA VEZ MAIOR": Madame Claire | 40 anos
“A competitividade sente-se cada vez mais. O número de casas triplicou. Agora o número de casos de pessoas que estão a fazer sem preservativo está também a crescer. Quando me ligam a perguntar se fazemos sem camisinha já sei que na vizinhança o estão a fazer. Os clientes também nos contam o que as outras andam a fazer e onde o fazem.”
"FAÇO 12 CLIENTES TODOS OS DIAS": Monique | 38 anos
“Saí de casa e fui logo trabalhar para numa casa de prostituição. Foi uma decisão difícil porque na época era difícil ser travesti no Brasil. Os travestis ou se dedicavam à prostituição ou a eram cabeleireiros. Em Portugal atendo 12 clientes por dia a uma média de 40 euros. Aqui os homens são mais quentes.”
GESTOR VIRA PROSTITUTO
Era gestor de recursos humanos numa empresa de automóveis no Brasil, onde trabalhavam 800 pessoas. Uma reformulação de quadros levou-o para desemprego. Portugal foi o destino, mas a prostituição ainda estava longe. O travesti Bianca passou pelo telemarketing, uma quinta em que guardava 80 vacas em Castelo Branco e a distribuição de publicidade. Nada que desse para viver.
“A minha vida mudou completamente. Agora vou a qualquer sítio e não temos problemas em comprar o que queremos”, disse.
"UM (CLIENTE) DISSE QUERER SER COMO EU"
Desde menino no Brasil que Monique sabia querer ser uma mulher. Começou a usar as roupas das amigas que vestia às escondidas e a sentir-se atraída por amigos. Mais tarde, quando a máscara de rapaz teve de cair, assumiu o seu lado efeminado. Veio o silicone. Uma transformação feita com algum sofrimento familiar. Actualmente, os clientes que a procuram invejam-na. “Um disse que queria ser como eu. Era frustrado por não assumir. Outro cliente pediu-me para ir à casa de banho e ao sair estava de peruca e todo transformado. A fantasia dele era ser travesti.”
NOTAS
COMBATER A SIDA COM OFERTA DE PRESERVATIVOS
Seja nos apartamentos ou na rua, a Associação Existências distribui centenas de preservativos todos os dias.
Conta com 14 técnicos e seis voluntários para uma população de mais de 400 pessoas.
'PRAÇA' DURANTE 15 DIAS
Nos apartamentos as mulheres fazem ‘praça’ durante duas semanas. Nos casos de maior sucesso ficam até três meses.
INTERNET FACILITA NEGÓCIO
A internet começa a ser um meio que facilita o negócio. “Assim já sabem o que querem e o que vão encontrar”, disse Madame Claire.
PROSTITUIÇÃO LEGAL REGULARIZAVA DEZ MIL
A legalização da prostituição levaria a regularizar a situação de cerca de dez mil mulheres ilegais, segundo fontes do SEF. A maior parte delas vem do Brasil – 70 por cento – seguindo-se as mulheres dos países de Leste.
30 MIL
O negócio envolve mais de 30 mil prostitutas portuguesas e estrangeiras, movimentando 2,5 mil milhões de euros. Se a actividade fosse legal o Estado recebia 650 milhões.
METADE GOSTA DE SER PROSTITUTA
“Cinquenta por cento das mulheres que andam nesta vida gostam mesmo do que fazem. É por prazer”, disse ao ‘CM’ Madame Claire, há vinte anos na prostituição.
PREÇOS PARA TODOS OS GOSTOS
Na rua os preços não passam dos 25 euros, geralmente até são mais baixos. Nos apartamentos, os preços chegam até aos 50 euros.
GOSTOS TRADICIONAIS
Em Coimbra a maioria dos que procura a prostituição tem ainda, segundo Madame Claire, gostos conservadores. “Não são de sadomaso-quismos”, afirma.
MARIDOS PROXENETAS
Os maridos são muitas vezes proxenetas das mulheres. A actividade não cria problemas na relação pois é o único meio de subsistência.
FAMÍLIAS DESCONHECEM
A maior parte das prostitutas com quem o ‘CM’ conversou disse que a sua actividade é desconhecida das famílias. Inventam outras actividades para justificar os ganhos.
400 MIL
Estima-se que em Espanha haja 400 mil mulheres na prostituição. As máfias estrangeiras dirigem nada menos do que quatro mil bordéis em todo o País.
APARTAMENTO NUM 1º ANDAR
Bianca e Ana Carolina, dois travestis, disseram ter alugado uma casa no 1.º andar de um prédio, pois assim torna-se mais discreto para eles e para os clientes.
FILHA DESCOBRE ATRAVÉS DE FOTO
A filha de Drika, brasileira de 49 anos, descobriu o que a mãe fazia através de uma foto num jornal. “Fez um escândalo, mas não contou para o meu pai”, disse-nos Drika.
*Reportagem do Correio da Manhã
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